Pão de Peito Frito – Memória afetiva culinária da Renata Rodrigues

Histórias afetivas de cozinha, vivenciadas ao longo das nossas vidas, fazem parte da nossa formação pessoal e nos moldam para gostos e comportamentos culinários. Pão de Peito Frito, uma história afetiva vivida na cozinha da avó de Renata Rodrigues, é uma destas memórias inesquecíveis. Divirtam-se! 

Sou descendente de espanhóis e argentino. Na realidade eram todos espanhóis imigrantes, mas por embarcarem no navio errado meus bisavós paternos foram parar na Argentina e não no Brasil como os demais amigos, e só dez anos depois, quando meu avô era um menino, vieram de Tucumán para Sorocaba.  

Há muita história envolvendo a origem brasileira de tudo – e sempre busco um pouco mais dessas lendas familiares antes que seus últimos narradores as esqueçam.  

Tenho muitas lembranças culinárias das minhas avós – cada uma com um estilo diferente, mas ambas as matriarcas de brincos de argola e bigodes de espanholas (“mulher de bigode nem o diabo pode!”).  

Minha avó materna, Dona Nina, tinha forno à lenha no quintal da casa. Sua principal utilização era como máquina de pão – pão caseiro sem igual. 

Após o preparo da massa, como um bebê, ela era posta pra descansar em um quarto quieto e escuro com cobertores acalentando seu sono. Antes de sair do aposento, minha avó retirava uma pequena porção da massa – como uma bolinha de gude – e a mergulhava num copo de vidro (de extrato de tomate Elefante) com água sobre o beiral da janela da cozinha. A gente ficava observando de minuto em minuto a tal bolinha mágica vir à superfície: era o sinal de que a massa estava pronta. 

Meu avô cilindrava a massa, que aos poucos os pães iam tomando forma, sendo levados ao forno que já tinha sua lenha aquecida. Eram dispostos em folhas de bananeira e assados exalando um cheiro inconfundível pelo bairro todo.  

Enquanto isso, os primos se deliciavam catando amoras do pé e ouvindo as mesmas frases sobre manchar a roupa, estragar a fome de pão e algumas outras palavras que não deviam ser muito belas em sua língua natal…  

Quando os pães ficavam prontos era a hora da nossa missão.  Cada neto recebia um pão embrulhado em um guardanapo de pano e um endereço de entrega: casa da comadre Julia, casa do padre, dona Dirce costureira, mercadinho do seu Gomes, farmácia da dona Lurdes e até mesmo nossos lares. E assim incumbidos íamos rápidos como águias, mas felizes como cegonhas, entregar a encomenda ainda quentinha. 

“Fulana, minha vó mandou um pão pra senhora tomar café!” E antes que o rosto apetitoso mandasse o recado de “Deus lhe pague!” já corríamos pelas ruas pensando na aposta de quem chegaria antes de volta e sentaria na cabeceira da mesa do café.  

Quando voltávamos, à mesa estava posta para a nossa simples e deliciosa recompensa: pão quente com manteiga de tablete. Algumas vezes acompanhavam broas de fubá, mantecais, rosquinhas de pinga ou parafusos doces comprados no carro do padeiro que passava toda tarde – e minha avó não negava o presente do pão caseiro ao padeiro, pois era um dos felizardos. Tomávamos café preto recém-coado ou um chá mate forte e doce se tivesse alguma visita mais ilustre.  

Raramente sobravam pães caseiros da Dona Nina para os dias seguintes, mas quando isso ocorria eles tomavam uma consistência pesada e então eram cortados pelas mães com uma faca de serra enorme apoiados sobre o peitoral. Depois “lamecados” de margarina, aquecidos na frigideira e servidos com leite e “Toddy” gelado. Chamávamos essa iguaria de Pão de Peito Frito e nos divertíamos brincando com essa ingênua malícia infantil.  

Outro dia vi o cilindro do meu avô entre as relíquias da minha mãe – voltei no tempo por segundos e pude sentir cheiro do forno da minha avó. Agradeci por essa lembrança culinária, carregada de afeto e saudades… 

Mas afinal, se saudade é o amor que fica, faz bem senti-la de vez em quando…  

Sobre as Rosquinhas de Pinga da Dona Nina

“Seguinte: falei com a minha mãe sobre a rosquinha de pinga. Ela lembrou que minha avó usava o forno quente do pão para assá-las, que é uma adaptação brasileira das rosquinhas de licor de anis da Espanha, por isso que algumas receitas mandam molhar em chá de erva doce no final. Ela disse que a verdadeira rosquinha de pinga é dura – não é como um pão doce – que parece mesmo àqueles parafusos que vendem em padaria pra gente comer mergulhando no café com leite”.

Rosquinha de Pinga – Receita da Minha Avó Dona Nina

  • Aquecer meio litro de óleo – bem quente – pode usar uma casca de pão como termômetro até que fique tostada no óleo;
  • Deixar esfriar um pouco. Esse procedimento “amadurece” o óleo (falava a minha avó);
  • Adicionar ao óleo morno 1/2 litro de pinga – aos poucos e constante – num  “fio de bica” (como água de torneira  aberta um pouco);
  • Nessa mistura adicionar farinha de trigo até dar o ponto de enrolar com as mãos;
  • Fazer tiras compridas enroladas e torcidas, cortar na “medida do pulso” e unir as pontas para fazer uma argola;
  • Assar em forma enfarinhada;
  • Após tirar do forno, mergulhar em água na temperatura ambiente e passar no açúcar refinado (nessa etapa algumas pessoas passam no chá de erva doce);
  • Guardar num recipiente fechado.
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